A vida de Roger Waters foi marcada pela guerra décadas antes de ele nascer. Em 1916, quando seu pai, Eric Fletcher Waters, tinha apenas dois anos de idade, seu avô, George Henry Waters, foi morto na Primeira Guerra Mundial. O drama familiar repetiu-se na Segunda Guerra, com a morte de Eric Fletcher, em 1944, na Itália, quando Roger era um bebê de cinco meses.
A história do ex-líder do Pink Floyd é um exemplo das feridas deixadas por conflitos armados –e que se recusam a cicatrizar. Numa nova versão da obra "The Wall", Roger Waters decidiu exibi-las de forma mais explícita.
"The Wall", lançado originalmente em 1979, como um disco duplo do Pink Floyd, fala de um astro de rock atormentado pela perda do pai na guerra, a sua experiência em um sistema educacional repressor e difíceis relacionamentos com as mulheres e a sociedade. "É a minha vida", resumiu, em entrevista exclusiva à Folha, em Londres.
O filme "Roger Waters The Wall", a ser lançado mundialmente em 29/9 –inclusive no Brasil–, traz a turnê que rodou o globo entre 2010 e 2013, vista por 4 milhões de pessoas, ao lado de reflexões do cantor sobre suas dores pessoais.
O resultado é maior que o sofrimento de uma família marcada pelas guerras: uma convocação contra todos os conflitos armados e a violência política que até hoje matam incontáveis inocentes.
O próprio Waters codirigiu o filme e é seu personagem principal. Entre uma música e outra, vemos o artista em uma jornada até a França, onde está o túmulo do seu avô, e a Itália, onde o nome de seu pai, cujos restos mortais nunca foram recuperados, está escrito num cemitério militar.
Aos 71, Waters revelou que já tem um novo álbum composto e pretende realizar uma série de shows, que devem incluir sucessos do Pink Floyd.
Folha - O que esse filme significa para o senhor?
Roger Waters - Minhas motivações para fazer o filme foram as mesmas que tive para fazer o show. Tendo tomado a decisão de ressuscitar o trabalho ["The Wall"], tinha então que pensar como poderia atualizá-lo –algo que fiz com Sean Evans [codiretor].
Tudo mudou para mim desde 1979 [ano do lançamento do disco "The Wall", do Pink Floyd].
É um manifesto muito pessoal, mas de certa forma é bem menos do que era em 1979, quando ele era mais concentrado nos meus problemas pessoais.
Gosto de pensar que esse filme espalha suas preocupações de forma mais geral, sobre todo o mundo que teve entes queridos mortos em guerras, não apenas sobre meu pai ou meu avô. O sr. fez uma viagem à França e à Itália para visitar memoriais de seu avô e de seu pai. Como foi fazer essa jornada?
Depois que fizemos a turnê, estávamos editando o filme, e pensei: "Está faltando alguma coisa". De repente tive essa ideia, "preciso ir visitar o túmulo do meu avô"; "talvez a gente devesse filmar isso"; "talvez eu devesse ver o memorial com o nome do meu pai".
Tem uma cena no filme "Roma, Cidade Aberta" [1945], em que colocam um padre diante de um pelotão de fuzilamento. Os italianos atiram sem acertá-lo, e o oficial alemão atira na cabeça dele. Eu disse "vamos fazer isso, visto da janela do carro". Por que isso é relevante? Simplesmente é.
Da esquerda para a direia: os músicos Richerd Wright, Roger Waters, Nick Mason e David Gilmour, do grupo de rock inglês Pink Floyd, em foto de divulgação do álbum "The Dark Side of the Moon", de 1973
Essa viagem fez o sr. ver o projeto de outra forma?
Sim, fiquei feliz. Quando fizeram o memorial com o nome do meu pai, em Aprilia [Itália], eles escreveram "E a todos os soldados aliados que morreram...". E eu disse, "Vocês não podem dizer isso. Vocês podem dizer 'e todos os mortos', mas vocês não podem deixar a Wehrmacht [tropas alemãs] de fora". Não vamos começar a acenar bandeiras.
Também foi na Itália que os brasileiros lutaram contra a Alemanha nazista, pouco depois que seu pai foi morto, a partir do fim de 1944...
Eu conheci alguns deles, em Porto Alegre. Eu tinha veteranos de guerra no show, toda noite. E fui vê-los no intervalo. E eles tinham todos 90 anos de idade! Havia 20 deles, foi fantástico.
Apesar das mudanças, "The Wall" ainda tem a mesma história de 1979. Por que esse disco é tão duradouro e ainda toca os jovens?
Quando as pessoas atingem a puberdade, elas começar a pensar num panorama maior, a pensar mais filosoficamente ou politicamente sobre as coisas. Existe uma fome por algo que elas, instintivamente, sabem que é real.
"The Wall" não é algo construído, inventado. É a minha vida. Sou eu escrevendo sobre meus sentimentos e pensamentos. E, obviamente, tem algumas músicas cativantes. "Another Brick in the Wall" é uma espécie de hino de protesto bacana para jovens estudantes cantarem –ou qualquer pessoa cantar. Na África do Sul, antes do fim do apartheid, garotos negros cantavam isso nas ruas quando estavam recebendo tiros da polícia.
Que tipo de movimento pacifista é possível fazer hoje?
Boa pergunta... Esse pequeno trabalho que eu fiz tenta responder essa questão, pelo menos em parte. Os fatores que criam, apoiam e mantêm esse estado de guerra permanente são nacionalismo, excepcionalismo e comércio. Se chegou o momento para pararmos de brigar por centavos e grãos, este é o momento. Eu sei que é muito difícil. A ideia de que a competição é uma coisa realmente boa e de que o livre mercado é uma coisa realmente boa não dará um futuro para nossos filhos e os filhos deles.
O sr. enviou uma carta a Caetano Veloso e Gilberto Gil pedindo que cancelassem o show que farão em Tel Aviv em julho. Eles manterão o show.
Acabei de saber... Acontece. O que eu posso fazer?
Vai insistir com eles?
Claro que não, eles são crescidos. Tudo que eu pude fazer foi escrever uma carta para eles. E eles nunca me escreveram de volta.
O sr. tocou em Israel em 2006...
Sim, em 2006, mas foi naquela época que eu conheci o pessoal do BDS [boicote, desinvestimento, sanções; grupo de apoio aos palestinos]. E cancelei meu show em Tel Aviv, e tocamos numa comunidade agrícola, em que judeus, muçulmanos e cristãos vivem juntos. Em 2007 a ONU me levou por toda a Cisjordânia, e era horrível. Todos os que vivem lá precisam ter direitos iguais.
O sr. recebe retaliações de Israel?
Nos últimos anos, eu tive de aguentar ataques bastante selvagens, me acusaram de ser antissemita. E eu tive de explicar tantas vezes que isso não tem nada a ver com atacar judeus, não tem nada a ver com judaísmo, tem a ver com as políticas do governo atual de Israel.
Seus próximos passos serão na atuação política ou no mundo da música?
Eu acabo levado para várias direções, mas compus um novo álbum e estou trabalhando nisso. Esperto transformá-lo num show para arenas. É uma ideia teatral interessante. Se eu tocar em arenas, obviamente vou tocar músicas antigas também. Por sorte, como eu tenho pintado o mesmo quadro nos últimos 50 ou 40 anos, "Us And Them" e outras músicas antigas minhas vão combinar com uma narrativa nova, porque elas carregam mensagens semelhantes ao meu novo trabalho. Eu lhe digo sobre o que é: meu novo álbum é sobre um velho homem e um garoto, e o garoto tem um pesadelo em que as crianças estão sendo mortas. E ele não sabe por quê. Então ele pergunta ao velho, "Por que eles estão matando as crianças?". E o avô responde, "Vamos descobrir". É simplista, mas ao mesmo tempo é importante perguntar: "Por quê?".
O senhor tocou com David Gilmour num evento da Fundação Hoping [entidade de apoio a crianças palestinas, em 2010]. Pode haver ainda novas apresentações suas com ele e Nick Mason, por alguma causa política?
Não sei... A Fundação Hoping é uma coisa, David não vai seguir o mesmo caminho do BDS [boicote a Israel]. Nick sim, Nick se juntou a mim numa carta aos Rolling Stones para que não fossem a Israel. Mas David tem uma opinião diferente, e tudo bem. Obviamente eu gostaria que todo mundo... Como eu escrevi aos dois cantores brasileiros. Tempos atrás, quando todos nós estávamos no movimento contra o apartheid, era quase universal.
ROGÉRIO SIMÕES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LONDRES
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