Feliz aniversário
Fonte: ARQUIVO DN (João Gobern)
Um dos mais reconhecíveis e reconhecidos guitarristas da era rock chega aos 70 anos. Anunciou a pré-reforma há uma década mas não parou. Mas já se despediu do Pink Floyd...
Falar em premeditação poderá pressupor dotes de adivinhação a David Jon Gilmour, que hoje mesmo assume a condição de septuagenário, mas o facto indesmentível é que ele chegou mesmo, à terceira "volta", à liderança do mítico Pink Floyd, que também se encarregou de "sepultar", com o álbum The Endless River, lançado em 2014.
Quando chegou à banda, em dezembro de 1967, nada faria prever essa ascensão do homem que foi contratado por causa da demência de Syd Barrett, o "chefe" dos primeiros tempos, declarado incapaz para subir a um palco mas, ainda assim, fugazmente mantido como membro criativo do grupo que, desta forma, chegou a funcionar em quinteto, com Barrett longe das vistas do público, Gilmour, Roger Waters, Richard Wright e Nick Mason.
O segundo capítulo foi dominado por Waters, que, progressivamente, tomou conta das ocorrências, deixando cada vez menos margem de movimentos aos seus parceiros. Em The Wall (1979), a percentagem de autorias de Roger cresceu exponencialmente e Wright foi despedido. Em The Final Cut (1983), o alvo passou a ser Gilmour, cujas contribuições acabaram por ser gravadas quando Waters não estava presente no estúdio.
Em 1985, ao mesmo tempo que publicava The Pros and Cons of Hitch Hiking, a solo, Roger Waters anunciava o fim do Pink Floyd, uma "força gasta". Foi o momento decisivo para Gilmour, que desmentiu o antigo parceiro, prometeu continuidade ao projeto que tinha mudado o mundo da música em geral, e não apenas a escola dita progressiva e o movimento psicadélico. Mais do que isso, o guitarrista prometeu um regresso dos Floyd ao "equilíbrio perdido" entre a componente musical e as palavras, recordando esse trunfo como decisivo para a longevidade e para a popularidade de discos como The Dark Side of the Moon (1973),Wish You Were Here (1975) e Animals (1977).
Gilmour sabia precisamente o que corria a seu favor: a força de um nome tão poderoso que ninguém queria ver desaparecer e o facto de o som da sua guitarra valer tanto com as histórias de Waters. O tempo viria a dar-lhe razão, se pensarmos nos resultados comerciais da época em que conduziu os destinos da banda - e que deram lugar a A Momentary Lapse of Reason (1987), The Division Bell (1994) e The Endless River, bem como a dois discos gravados ao vivo, Delicate Sound of Thunder (1988) e Pulse (1995). Artisticamente, o "feito" já é mais discutível.
A arma das seis cordas
Fixemo-nos na guitarra de David Gilmour, que se terá apaixonado pelo instrumento depois de ouvir Rock Around the Clock (Bill Haley and The Comets), Heartbreak Hotel (Elvis Presley) e Bye Bye Love (Everly Brothers). Começou a praticar numa guitarra emprestada por um vizinho, que - reza a narrativa associada - nunca devolveu.
Em 2011, a revista Rolling Stone elegeu-o como o 14.º maior guitarrista de todos os tempos, numa lista encabeçada por Jimi Hendrix. Com todas as arbitrariedades envolvidas, com alguma dificuldade em perceber os critérios que levam, por exemplo, à inclusão de Lou Reed e Keith Richards (um gênio compositor e uma personalidade estruturante, mas nem por isso grandes instrumentistas), há algo que deve registar-se: no âmbito do rock progressivo, gênero caído em desgraça por culpas próprias e preconceitos alheios, Gilmour é um dos três "resistentes", lado a lado com Robert Fripp (King Crimson) e Steve Howe (Yes). De fora, ficaram Gary Green (Gentle Giant), Justin Hayward (The Moody Blues), Andy Latimer (Camel), John Lees (Barclay James Harvest), Jan Akkerman (Focus) e, com uma enorme dose de injustiça, Steve Hackett (Genesis).
Indesmentível é o fato de - tal como acontece com Hendrix, com Eric Clapton, com Mark Knopfler (Dire Straits), com Jimmy Page (Led Zeppelin), com The Edge (U2), com Ry Cooder ou com Tom Verlaine (Television) - Gilmour ser reconhecível aos primeiros acordes. As suas longas mas assertivas "digressões" nas seis cordas valeram decisivamente para a definição do som dos Pink Floyd. De tal forma que os guitarristas chamados por Waters - Snowy White ou Rick Di Fonzo - para reproduzir o trabalho original de Gilmour, de cada vez que fazia subir ao palco as suas canções dos Floyd, ficaram sempre abaixo dos mínimos. Ao invés, o Pink Floyd, como se viu, resistiram às partidas e mudanças, em grande parte porque contavam com a maior arma de David Gilmour. Em 2006, a revista Guitar World inclui três desempenhos de David - Money, Time e Comfortably Numb - entre os cem melhores solos da história do rock. Vale o que vale, mas a síntese do crítico Jimmy Brown esclarece tudo: "Os solos de Gilmour funcionam como um raio de laser que atravessa a neblina." Pontos seguros: os solos não estão assentes na velocidade dos dedos e parecem precisar de menos notas para definir um caminho quase sempre irresistível.
O longo adeus
Há dez anos, quando cumpria o seu 60.º aniversário, David fazia um preanuncio de reforma, ao confessar-se cansado de digressões e cada vez mais tentado a tocar apenas em casa, na sua quinta de Wisborough Gree, no Sussex, ou no seu barco-casa, o Astoria. Agora, depois das edições de The Endless River, uma clara despedida dos Pink Floyd, e Rattle That Lock, quarto disco da carreira a solo, é provável que, para o ouvirmos, nos vejamos atirados para o material já publicado. Ateu confesso, tradicional apoiante do Partido Trabalhista, uma das 200 personalidades que subscreveram um manifesto contra a independência da Escócia por altura do referendo local, David Gilmour reserva tempo para os oito filhos (um deles adotado), quatro de casamento: a mais velha, Alice, tem 40 anos, a mais nova, Romany, 14. Gabriel, a caminho dos 19, tocou piano no último disco do pai. David é casado com Polly Samson, 16 anos mais nova e letrista de muitas das suas criações mais recentes, depois de, em primeiras núpcias, ter desposado Ginger Hasenbein.
No ativo, teve tempo para descobrir um talento chamado Kate Bush, recomendando à editora EMI que assinasse contrato com a jovem adolescente e que lhe desse tempo para crescer. Assim se fez. Produziu, entre outros, os Dream Academy e os Orb. Tocou com meio mundo, de B.B. King a Robbie Robertson, de Tom Jones a Elton John, de Grace Jones a Bob Dylan, de Seal a Bryan Ferry. Viu morrer Syd Barrett (em 2006) e Richard Wright (em 2008). E, como o tempo cura muito, esteve presente na única reunião dos Pink Floyd desde o "grande cisma", no Live 8. Por tudo isto e por muito que nos custe, ganhou o direito à reforma. Mas talvez seja melhor chamar-lhe repouso. Enquanto há vida...
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