Roger Waters, ao fundo, com jovens atendidos na São Martinho,
que subiram ao palco do Maracanã.
Em outubro do ano passado, 12 jovens colocaram em evidência, no Brasil e no mundo, o trabalho da Fundação São Martinho. Alunos de canto do Projeto Educagente, eles subiram ao palco do Maracanã, no Rio, para fazer coro com o músico Roger Waters em “Another brick in the wall” (“Outro tijolo no muro”, em tradução livre) – sucesso do Pink Floyd, banda da qual o músico fez parte nos anos 1970, quando os jovens que subiram ao palco nem sonhavam em nascer. Os 12 são tijolinhos não de um muro, mas de uma ponte que a São Martinho constrói há 35 anos entre jovens em situação de vulnerabilidade social e “uma sociedade mais justa, respeitosa, igualitária e acolhedora para todos”, como prega em seu site. “Onde houver uma criança ou adolescente com os seus direitos violados, ali estará a São Martinho para defender esses direitos que são fundamentais ao desenvolvimento humano”, anunciam.
Só no ano passado, foram 1.803 beneficiados e 5.476 atendimentos realizados por colaboradores e voluntários da instituição. O trabalho rendeu à São Martinho, que vive integralmente de doações, o Prêmio Prix Cáritas 2019, uma espécie de Oscar do setor de desenvolvimento social oferecido há 17 anos pela Cáritas Suíça a instituições em todo o mundo que se destacam na atuação no âmbito social, na cooperação voltada para o desenvolvimento ou na comunicação intercultural. A instituição concorreu com nove outras entidades. E, pela primeira vez, uma ONG brasileira foi premiada pela organização filantrópica, que é ligada à Igreja Católica, recebendo 10 mil francos suíços (cerca de R$ 38 mil) para ajudar a financiar seus projetos
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Frei Adailson e Lucimar Correa mostram
o prêmio que a São Martinho recebeu na Suíça
“Foi uma emoção muito grande! A coroação de um trabalho feito há mais de três décadas e o sinal de que estamos no caminho certo”, comemora o diretor da instituição, Frei Adailson dos Santos, que esteve em Lucerna, na Suíça, para receber o prêmio ao lado da coordenadora do Núcleo de Acompanhamento Interdisciplinar (NAI) da São Martinho, Lucimar Correa. “A transformação de crianças e jovens, principalmente dos que vivem em situação de rua no Rio de Janeiro é muito complexa, tanto para o trabalho social quanto para o de desenvolvimento. Precisamos impactar a vida deles. Só não ampliamos nossos projetos, com mais oficinas e unidades, porque existe uma limitação financeira”.
Nascida em 1984, quando um grupo de educadores sociais iniciou um trabalho de abordagem de crianças nas ruas, a São Martinho é uma organização sem fins lucrativos inspirada na Campanha da Fraternidade de 1984 (cujo lema foi “Para que todos tenham vida”). De lá para cá, mais de 90 mil crianças e jovens já passaram pela instituição, vinculada à Província Carmelitana de Santo Elias.
“Começamos o trabalho com crianças que viviam nas ruas, como engraxates. Era uma inciativa da Igreja, que contava com um grupo de voluntários. Chegamos a ter sete unidades socioeducativas só no Rio, além de uma casa de acolhida, que foi fechada em 2009 por falta de verbas. Hoje mantemos a sede, na Lapa, além da unidade de Vicente de Carvalho, onde atendemos crianças que têm famílias no contraturno, oferecendo oficinas para elas não se tornarem presas fáceis e seguirem por outros caminhos”, diz Frei Adailson. Hoje, a São Martinho conta com 87 colaboradores, entre educadores, psicólogos, pedagogos, advogados, assistentes sociais, fora o quadro de aproximadamente 15 voluntários.
“No Centro, temos menos oficinas. Hoje atendemos aproximadamente 500 crianças em situação de rua lá. Já em Vicente de Carvalho estão cerca de 1.500 estudantes sendo atendidos antes ou depois da escola”, acrescenta o diretor.
Alunos e professores da São Martinho, instituição
que atende, por anos, cerca de 2000 crianças e jovens.
Em 2015, com a consultoria do Instituto Ekloos, o modelo de atendimento da São Martinho foi reestruturado e dividido em cinco eixos de atuação integrados e centrados nas crianças e jovens beneficiados. O primeiro eixo é a Abordagem, porta de entrada para a instituição: diariamente, uma equipe de assistentes sociais e educadores percorre diferentes espaços públicos, como comunidades, ocupações urbanas e praças, fazendo o primeiro contato com a garotada através de atividades lúdicas.
Fizemos um mapeamento de onde crianças e adolescentes que vivem em situação de rua estão. Os educadores convidam para a acolhida, que inclui banho e alimentação. Depois fazemos uma avaliação técnica com psicólogos e assistentes sociais para ver, por exemplo, interesses e aptidões de cada um
Frei Adailson diretor da instituição
“Fizemos um mapeamento de onde crianças e adolescentes que vivem em situação de rua estão. Os educadores convidam para a acolhida, que inclui banho e alimentação. Depois fazemos uma avaliação técnica com psicólogos e assistentes sociais para ver, por exemplo, interesses e aptidões de cada um”, explica Frei Adailson. Quem topa participar é encaminhado para oficinas como as de informática, capoeira, percussão, esporte, arte e educação, na unidade da Lapa.
Uma vez lá dentro, os beneficiados contam com o Núcleo de Acompanhamento Interdisciplinar (NAI), formado por pedagogos, assistentes sociais, psicólogos e advogados. A equipe de profissionais trabalham com as crianças, os jovens e as famílias intermediando situações de conflito. O objetivo é promover uma mudança gradual que assegure o bem-estar e minimize os problemas decorrentes da pobreza, do acesso a serviços públicos de má qualidade e da exposição aos mais diversos tipos de riscos, incluindo violência e drogas.
Há também o Núcleo Comunitário Educagente, que envolve atividades de esporte, lazer, cultura e educação, e onde são oferecidas oficinas de educação ambiental, judô, capoeira, gastronomia educativa, informática, jogos coletivos e música, muitas formas de fazer e tocar música. O Centro de Música Jim Capaldi, projeto iniciado pelo músico inglês, ex-baterista da banda Traffic, que tocou com artistas como Jimi Hendrix, Eric Clapton e Goerge Harison (com este gravou uma versão, em inglês, de “Anna Júlia”, do Los Hermanos). Capaldi foi casado com uma brasileira, Ana Capaldi, morou no Brasil e, durante anos, o casal ajudou financeiramente o Educagente.
Assim, surgiram o Coral Jim Capaldi e oficinas de canto, cavaquinho, percussão, violão e prática de conjunto. “O Centro de Música teve início há mais de 15 anos, com Jim querendo apadrinhar uma iniciativa que trabalhasse as crianças na arte, no canto, nos instrumentos. O projeto, totalmente montado por ele e, sobretudo, pela Ana, sobrevive, há dois anos, com contribuições esporádicas. Mas as oficinas continuam acontecendo. Descobrimos muitos talentos lá”, conta Frei Adailson. Os alunos, de 7 a 17 anos, são moradores de comunidades como o Conjunto Residencial do Ipase, Morro do Juramento, Jardim do Saco, Morro do Trem, Jardim do Carmo e Morro da Fé. Todos têm família, estudam e frequentam as oficinas no contraturno escolar. No ano passado, as turmas somaram 203 participantes. Entre eles, estavam os 12 que cantaram com Waters, cuja filha Tabitha é amiga de uma das filhas de Jim e Ana. Assim nasceu a ideia da participação dos jovens no show, que exigiu uma preparação de quatro meses.
Outro eixo de atuação da São Martinho é a Profissionalização, que acontece em duas etapas. A primeira, através do Curso de Formação Básica, que inclui oficinas e ciclo de palestras focados em dar aos jovens acesso a conteúdos e vivências capazes de desenvolver suas primeiras competências profissionais. Ao concluírem o curso, eles são encaminhados para processos seletivos nas 46 empresas públicas e privadas conveniadas à São Martinho. Entre as empresas, estão a Petrobras, Ipiranga e Prodigy Hotel.
Por fim, há o eixo de Desenvolvimento Institucional, que, entre outras atribuições, é responsável por mobilizar recursos financeiros. “Nosso objetivo é que essas crianças sejam inseridas no mercado de trabalho no futuro. Elas precisam estar matriculadas e ter um bom rendimento na escola para participar das oficinas e dos processos de profissionalização. Temos uma equipe para acompanhá-las. Muitas são incorporadas às empresas onde estagiam e outras tantas chegam à universidade”, orgulha-se o diretor da instituição.
Michelle dos Santos Pavão, da São Martinho, trabalha no IRB
Michelle dos Santos Pavão, de 20 anos, trilhou este caminho de sucesso. Filha única de pai segurança e mãe dona de casa, morava com eles em uma quitinete na Lapa e estudava numa escola pública quando, aos 14 anos, ouviu falar na São Martinho. “Sempre quis ajudar meus pais e vi ali uma chance. Dos 14 aos 15 anos, ligava para lá insistentemente para perguntar se podia participar. Na época, havia vagas para quem tinha nascido de abril de 1999 em diante, e eu sou de fevereiro daquele ano”, relembra ela, que um dia, finalmente, conseguiu falar com um coordenador da instituição e foi submetida a uma entrevista. “Passei, e duas semanas depois estava fazendo um curso básico de três meses. Tive aulas de matemática, informática (nunca tinha mexido em um computador) e até de como me comportar no ambiente de trabalho”.
Logo, a menina começou como Jovem Aprendiz no setor administrativo do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), onde ficou por um ano e onze meses. Depois, tornou-se estagiária de nível médio lá mesmo. Fez o Enem e passou, pelo ProUni, para o curso de Direito da Universidade Veiga de Almeida, onde cursa o quinto período como bolsista. Também com uma bolsa, estuda inglês na Cultura Inglesa, faltando três anos para se formar. Há um ano, foi contratada no próprio IRB – Brasil Resseguros.
“Eu nem sabia sobre o que era a empresa quando cheguei lá. Na minha turma de Jovem Aprendiz, éramos 11 alunos da São Martinho. Sete de nós fomos efetivados no instituto”, conta Michelle. “Meus chefes são advogados. Eles me deram muita força e apoio. Lá, tenho um plano de carreira”.
A futura advogada não se esquece da instituição que ajudou a mudar seu destino: “Foi a melhor fase da minha vida. Não teria oportunidades se não fosse a São Martinho. Mantenho contato com a fundação, troco experiências com eles até hoje”. As mudanças influíram também nas vidas de seus pais. “Eles não queriam que eu trabalhasse, pois não têm ensino superior e queriam que eu estudasse para chegar à universidade. Hoje vivemos num dois quartos, também no Centro, bem melhor. Eles estão bem felizes”.
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