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30/11/2019

The Wall completa 40 anos, um muro nascido da alienação








De SAPO (Portugal)
Paulo André Cecílio
Pink Floyd: 40 anos de um muro nascido da alienação

O mundo parecia, aos olhos de Roger Waters, um imenso e inóspito vazio para onde fora atirado em nome do estrelato, onde em cada esquina uma sanguessuga se dispunha a deixá-lo apenas ossos, onde a verdade havia sido substituída por uma década de luzes e de trips psicodélicas, de histórias sobre loucura e morte, de saudades de amizades passadas, de governos maquiavélicos. O mundo, para Roger Waters, deixara de ser um conforto. Pior ainda: o mundo era-lhe agora desconhecido.

O culpado, o muro. Não um muro físico, mas um muro psicológico, mental, que o escondia numa tentativa de o fazer sobreviver, mesmo que essa perspetiva fosse, a cada dia, menos gloriosa. Waters, e o Pink Floyd, haviam chegado ao patamar que todas as bandas almejam; mas o resultado não veio sem os seus sacrifícios. A perda de Syd Barrett em 1968 fora a primeira. As dívidas excessivas vieram a seguir. O isolamento dos membros do grupo em razão de diretrizes conflitantes, Waters que tomou as rédeas do Pink Floyd na era pós-Barrett, mostrava-se cada vez menos disposto a abrir-se ao mundo, a abrir mão da sua criatividade para a juntar às dos outros.


A história começa com o muro e o muro começou a ser construído muito antes do Pink Floyd existir. Em 1944, com apenas cinco meses de idade, Waters perderia o pai na II Grande Guerra, durante a chamada Operação Shingle, na Itália, onde mais de 43 mil soldados Aliados perderam a vida. O trauma cresceria durante a infância e seria figura omnipresente ao longo de quase toda a sua vida. Um trauma que depressa se transformaria num sentimento de traição. Eric Fletcher Waters, o pai, tinha-se declarado objetor de consciência no período da Guerra, mudando as suas posições pacifistas mais tarde e juntando-se ao exército britânico. A traição sentida está precisamente nisso: no fato de Eric ter abandonado os seus ideais, apenas para, em última análise, morrer.

Não foi a única traição. No final dos anos 70, o Pink Floyd estava no topo do mundo – nem a explosão punk conseguiu tira-lo do pódio – mas o sucesso, como comprovado vezes sem conta, é uma faca de dois gumes. Mais discos e mais concertos esgotados significavam mais pessoas, mas não necessariamente uma compreensão da mensagem (filosófica, política) que o Pink Floyd e Waters tentavam passar. E o ponto de ebulição foi atingido em 1977, durante um concerto no Estádio Olímpico de Montreal, parte da digressão “In the Flesh”, na qual o Pink Floyd tocou pela primeira vez em estádios.

"Odiei, porque os concertos tinham se transformado numa espécie de evento social, e não numa relação normal e controlada entre músicos e o público. As filas da frente gritavam, gesticulavam, não prestavam de fato atenção ao que ouviam. Quem estava mais atrás, não conseguia ver nada..."


A alienação sentida entre Waters e público, derivada desta mesma ideia – que parece soar tão verdadeira ainda hoje... – levou o músico a fazer algo que até então seria impensável: cuspir num dos seus próprios fãs. E, ao contrário do que pensavam os punks de 1977, sempre dispostos a escarrar para o palco, a saliva não era de todo um elogio. Waters terminava a construção do seu muro, a antítese da ideia de humanidade: ela não existe se nos isolarmos dos humanos. Mas tinha que pô-lo abaixo, então voltar a superfície para respirar.


O primeiro passo, de forma algo paradoxal, foi o de reconstruir esse muro, musical e literalmente. “The Wall” é sobretudo a história de Roger Waters e de como ele foi sofrendo até não aguentar mais, ao longo da sua carreira. História essa que é personificada por Pink, artista rock que vê o pai morrer na Guerra, que sofre bullying por parte dos seus professores primários, que se torna numa estrela amante de todo o tipo de deboches e que se isola do mundo em agonia misantropa, imaginando-se fascista e genocida, até um julgamento criado na sua própria cabeça o levar a descobrir que (ainda) há esperança na Terra.


Já no Pink Floyd, havia o vermelho: em 1978, as finanças do grupo estavam de tal forma escassas que era necessário compor imediatamente um disco. Culpa do Norton Warburg Group, empresa de gestão financeira a quem os músicos haviam confiado o seu dinheiro e que o perdeu em diversos investimentos de risco. Não fosse por “The Wall” e o Pink Floyd poderia muito bem ter decretado falência e terminado ali, há 40 anos. Mas compô-lo poderia ser uma tarefa complicada sem alguém que lhes mostrasse o caminho. E esse alguém foi o produtor Bob Ezrin, que havia trabalhado com nomes como Alice Cooper ou Lou Reed e que ajudou a banda, e Waters, a encontrarem-se.

O resultado é uma das obras mais densas do Pink Floyd, e o disco a que comumente associamos a expressão “ópera rock” (mesmo que “Tommy”, do The Who, o preceda em dez anos). Uma hora e vinte minutos de magia e soberba musical, agrupando vários estilos distintos: rock espacial ('In the Flesh?'), pós-rock antes de o termo ser cunhado ('Another Brick in the Wall, Part 1'), pop ('Another Brick in the Wall, Part 2'), folk ('Mother'), ópera propriamente dita ('The Trial') e, claro, o tom melódico de 'Comfortably Numb', onde os solos de guitarra de David Gilmour tomam a dianteira e elevam todo “The Wall” ao status de culto.


Para além do som, a imagem – não só a que era criada em cada ouvinte com recurso aos poemas de Waters, mas também a que, em 1982, chegou aos cinemas pela mão de Alan Parker e Gerald Scarfe, com Bob Geldof no papel principal. “The Wall”, o filme, foi três anos após o disco um enorme sucesso a nível da crítica, tendo sem dúvida contribuído para ainda hoje falarmos da música com tanto respeito e carinho. A fusão perfeita entre todos os aspectos de criação. Uma obra de arte total.


À altura, nem foi visto dessa forma: muitos críticos insurgiram-se contra o maximalismo e o pretensiosismo da obra (convenhamos que, no final dos anos 70, o punk olhava dessa forma para tudo o que não fosse feito a partir de três acordes), que só começou a ganhar um estatuto canônico nas décadas seguintes ao seu lançamento. Mas o que a crítica não via, via-o o público, que o levou ao número um no ranking de vendas durante várias semanas. Ao álbum, e à canção que com o passar do tempo alcançou um status ainda maior que o do álbum: 'Another Brick in the Wall, Part 2', que fora do seu contexto passou a ser cantada por milhões de gargantas ao redor do planeta como canção de protesto. We don't need no thoughts control... 


Para além de todo o existencialismo presente na obra, e talvez sua maior virtude, está o fato de também transmitir uma mensagem de esperança aliada a um conselho precioso: quanto mais nos isolamos do mundo, quantos mais muros construímos, mais abrimos espaço ao ódio quando deveríamos preenchê-lo com o amor. O disco termina e começa com uma frase cortada a meio – Não foi por aqui que viemos? – atestando à natureza cíclica dos muros, um loop imenso de depressão e apatia. Mas essas podem ser vencidas, e os muros podem ser derrubados, e as lutas podem ser constantes e eternas para nos lembrar de que estamos vivos. A grande lição de um disco como “The Wall”, relembrando sempre que um muro físico nos tolda o senso comum (seja em Berlim, seja em Israel, seja nos Estados Unidos), é a de que a fragilidade e o medo existem para serem vencidos. 40 anos depois, não olvidemos essa mensagem.




14 motivos para amar o disco do Pink Floyd


O álbum conta com um conceito complexo e profundo baseado no personagem fictício Pink. E apesar da recepção inicial mista, o disco ganhou 23 x platina desde 30 de novembro de 1979, e gerou o único hit pop número 1 da história do Pink Floyd, "Another Brick in the Wall, Pt. 2".

Uma obra de arte do rock. Assim, listamos 14 motivos para amar The Wall do Pink Floyd:

Abertura


1. A abertura oferece o primeiro leitmotiv do disco acompanhado das guitarras trovejantes de David Gilmour e o teclado de Fred Mandel. Esta é realmente uma ópera rock, uma peça singular criada por Roger Waters com precisão, profunda prudência e tato.

2. Waters começa o disco com a seguinte questão: "Então, você pensou que gostaria de ir ao show." Mas, nos adverte que a história a seguir não é uma opção alegre para esquecer problemas e ouvir rock and roll.


3. Os estrondosos motores de avião no final de "In the Flesh?" e o choro do bebê em "The Thin Ice" são uma viagem de abertura ao início da narrativa em The Wall, imergindo-nos totalmente não apenas na música, mas em todo conceito histórico do disco focado no personagem fictício Pink baseado em Waters.

4. A interação entre a voz suave de David Gilmour com a voz maníaca e às vezes dominadora de Waters é um tema ao longo do disco. "The Thin Ice" é uma letra emotiva sobre a relação de Pink com os pais.

Another Brick in the Wall, Pt. 1



5. As duas primeiras faixas soam como um prólogo para a história que virá em "Another Brick in the Wall, Pt. 1" quando o pai de Pink morre na guerra. De agora em diante, não há como voltar atrás, é preciso ouvir o disco até o final, pois Pink, tomado pela dor, começa a se isolar da sociedade.


6. As guitarras pesadas com atraso de Gilmour são incríveis na "Parte 1", tocando com blues, funk e elementos de rock and roll nas linhas de sintetizador.

The Happiest Days of Our Lives

7. A linha de baixo de abertura é tão punitiva quanto os professores tirânicos da escola que causam mais sofrimento a Pink e fomentam a separação social.


Another Brick in the Wall, Pt. 2

8. Pink Floyd pegou uma batida de disco e transformou-a em um hino de angústia adolescente. É o único hit número 1 da banda, em grande parte devido à química rigorosa deles, com Nick Mason dando a batida, Waters a linha de baixo e Gilmour arranca acordes de funk como Nile Rodgers antes de sair para um inesquecível solo de blues.



Mother


9. Lembrando-nos dos hits acústicos do Pink Floyd, como "Wish You Were Here", "Mother" novamente explora os relacionamentos arrogantes e sufocantes de Pink, que o forçam a se afastar da realidade e se aprofundar mais em si mesmo.



10. A assinatura do tempo da música é engenhosamente complexa, espelhando a instabilidade de Pink neste momento da vida e o relacionamento não sincronizado com a mãe.

Goodbye Blue Sky




11. Gilmour se lembra do blitz e das "bombas caindo" sobre arpejos sombrios da guitarra. A música se torna mais pesada pela natureza semi-autobiográfica, pois o pai de Waters foi morto na Segunda Guerra Mundial.


Empty Spaces/Young Lust

12. A maneira como o diálogo interno espacial de "Empty Spaces" transforma-se em "Young Lust", um clássico dos anos 70, é dramático e perfeito. OPink Floyd emprega um som de rock mais comercial aqui para comentar a sexualização casual no rock and roll e impulsionar a narrativa do álbum para a frente, enquanto Pink usa o sexo para lidar com a ansiedade e depressão.




One of My Turns/Don’t Leave Me Now

13. As performances do sintetizador nessas duas faixas são tão tensas quanto Pink convida uma groupie a voltar para o quarto antes da música explodir em um frenesi maníaco e suicida.



Another Brick in the Wall, Pt. 3/Goodbye Cruel World

14. A maneira como as três partes de "Another Brick in the Wall" vão aumentando a intensidade é um dos desenvolvimentos geniais do disco. Contendo muitas das mesmas facetas melódicas e instrumentais das antecessores, a "Parte 3" viu Pink percorrer um buraco negro em espiral, entrando em loucura, ódio e descontentamento, levando-o a silenciar todas as vozes externas e mergulhar 'atrás da parede' em "Goodbye Cruel World".

Gerald Scarfe






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