Roger Waters fez história em 1990 ao levar "The Wall" como show beneficente à Berlim recém-reunificada. Mais do que um megaevento de rock, uma reencenação catártica da queda do Muro.
A Potsdamer Platz é um local de peso simbólico para a história alemã do século 20. Na metrópole em ascensão Berlim dos anos 1920, a praça evoluiu como polo não só para o tráfego cada vez mais intenso, mas também para uma cena cultural cosmopolita e inovadora.
Poucos anos mais tarde, pouco sobrava dela, a Segunda Guerra a destruíra quase completamente. O ditador Adolf Hitler escapou da justiça dos vencedores aliados cometendo suicídio no bunker subterrâneo próxima dela. Mas isso não foi tudo: também a subsequente divisão da Alemanha literalmente transcorreu na Potsdamer Platz, transformada em zona proibida na terra de ninguém do Muro de Berlim.
Assim, é quase impossível fazer jus ao significado do local e do momento, quando, em 21 de julho de 1990, o ano da reunificação alemã, Roger Waters, da banda Pink Floyd, encena o lendário show The Wall justamente na Potsdamer Platz.
Celebração da Alemanha reunificada
"Não é um comício do partido do Reich, tampouco uma convenção de fusão de dois partidos irmãos de Leste e Oeste", salientava em 1990 a revista Der Spiegel, ao anunciar o concerto, numa alusão aos grandes eventos típicos do século 20. Em vez disso, o que se realizou na icônica praça há exatamente 30 anos foi um concerto beneficente de dimensões gigantescas.
A construção do megapalco de 168 metros de largura e 41 metros de profundidade ocupou uns 600 trabalhadores durante mais de quatro semanas. Foram vendidos 220 mil ingressos com antecedência. De prontidão, estavam gruas para manipular colossais marionetes, assim como diversos helicópteros, uma banda de sopros do Exército Vermelho e participações musicais especiais do calibre de Bryan Adams, Cyndi Lauper ou a banda Scorpions.
E no entanto foram os sons mais suaves que ressoaram mais longamente. "What shall we use to fill the empty spaces where we used to talk" (O que vamos usar para encher os espaços vazios onde costumávamos conversar), pergunta, na canção Empty spaces, Pink, o protagonista do álbum estruturado como ópera-rock.
Como era sequer possível entender-se mutuamente, depois de tantos anos de separação e de confrontação de sistemas entre Leste e Oeste? A tentativa de resposta do show parece inequívoca, 30 anos mais tarde: apresentando o espaço de experiências recém-criado na Alemanha e aberto à vivência conjunta, como megaespetáculo de rock, a uma multidão estimada em 350 mil fãs – os portões haviam sido abertos por razões de segurança, devido à enorme afluência – e a centenas de milhões de espectadores diante da televisão.
Álbum icônico, show catártico
Antes de Berlim, o show The Wall já fora apresentado 31 vezes, nos Estados Unidos, Inglaterra e na cidade alemã de Dortmund, além de filmado em 1982, com Bob Geldof no papel principal. Mas sua origem foi o álbum homônimo, lançado em novembro de 1979. Ele marcara uma guinada estilística na música do Pink Floyd, o que não impediu uma duradoura trajetória de sucesso.
Fãs mascarados no show de 1990
Com 19 milhões de cópias vendidas já em 1990, até hoje The Wall mantém o recorde de álbum duplo mais vendido, assim como de um dos 30 mais bem sucedidos no mundo. Por outro lado, esse sucesso acabou acarretando a saída de Roger Waters da banda em 1985.
O cantor e baixista, que também escrevera a maioria das canções, exigia o controle artístico exclusivo, o que resultou na briga e separação. Indagado numa entrevista se voltaria a apresentar a ópera-rock na íntegra, Waters respondeu com um decidido "não". Mas se o Muro de Berlim caísse, então se poderia pensar a respeito, acrescentou.
Quando, cinco anos mais tarde, o impensável aconteceu, o roqueiro foi imediatamente consultado: criada um ano antes com o fim de reunir doações para vítimas de catástrofes, a fundação britânica Memorial Fund for Disaster Relief planejava um concerto beneficente. Waters reuniu então uma banda para substituir musicalmente seus colegas do Pink Floyd.
O fato de que o lendário show ia além de "apenas" música fica claro, por exemplo, em Another brick in the wall, Part 1, "irmã mais nova" da canção mais famosa do álbum. O protagonista Pink pensa no paí que não retornou da guerra: "Daddy's flown across the ocean, leaving just a memory" (Papai voou através do oceano, só deixando uma lembrança). Essa memória é visualizada como um tijolo de isopor que, juntamente com outros traumas e vivências forma um muro crescente: "All in all it was just a brick in the wall" (No fim das contas, foi só um tijolo no muro).
Mais de 300 mil pessoas compareceram ao
show histórico em 21 de julho de 1990
E mesmo que esse traumático muro simbólico se preste a diversas interpretações alternativas, para o concerto de 1990 em Berlim, a rigor, só existe uma: com 170 metros de largura e 25 metros de altura, o tremendo muro representava as lembranças dolorosas, biografias e realidades de vida dilaceradas da história alemã, assim como seu autoisolamento ideológico.
Nesse sentido, é também possível interpretar o fim do show como uma terapia de grupo histórica para a Alemanha reunificada. Quando, após duas horas de música e imagens, o muro cai ao som da palavra de ordem "Tear down the Wall" (Derrubem o muro), a multidão delirou: estavam esquecidas todas as panes técnicas, em parte graves, com quedas de energia e péssima qualidade de som.
Elas não passaram de acessórios incômodos de um espetáculo historicamente muito maior: a massa unida pelo evento, na Potsdamer Platz e diante dos monitores de TV, não apenas vivenciara um tremendo show de rock, mas fizera acontecer mais uma vez, numa catarse coletiva, a queda do Muro de Berlim.
Fonte: 2020 Deutsche Welle
Fonte: 2020 Deutsche Welle
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua participação!