Nick Mason, David Gilmour, Richard Wright em 1994
Matéria da revista BLITZ
A colheita tardia do Pink Floyd poderá ser comparada aos vintages que lhes garantiram a eternidade? Provamos a nova edição especial, “The Later Years”, a caixa que reúne o que a banda inglesa fez após a saída de Roger Waters
Há três distintas versões do Pink Floyd – a de Syd Barrett, a de Roger Waters e a de David Gilmour – e discutir qual das três é a melhor tem sido ocupação de muito boa gente ao longo dos anos. Em dezembro de 2018, em vésperas de levar o projeto Nick Mason’s Saucerful of Secrets em digressão aos Estados Unidos, o eterno baterista do Pink Floyd oferecia, em entrevista à Rolling Stone, uma possível solução para resolver, pelo menos, parte do dilema. De acordo com Mason, Roger Waters acredita que a escrita foi sempre o elemento decisivo na arte do Pink Floyd ao passo que Gilmour valorizará muito mais a interpretação, a execução musical. E, de certa forma, essa é uma maneira possível para nos orientar o olhar para as diferentes fases do grupo: se em clássicos como Dark Side of the Moon e Wish You Were Here o grupo tinha aprimorado tanto o lado conceitual da escrita das canções como a melhor forma de as apresentar ao mundo, em registos mais tardios, correspondentes já ao período pós-Waters, como A Momentary Lapse of Reason, a notória cedência no controle de qualidade do material parece ter sido sempre compensada por produções grandiloquentes e demonstrações por vezes gratuitas de virtuosismo, sobretudo por parte de Gilmour (escute-se “Dogs of War” como possível prova...).
Nesta última década, a recatalogação intensiva da obra do Floyd, preparando-a em definitivo para a era do streaming, rendeu uma série de importantes edições destinadas ao mesmo mercado premium em que se encontram os suspeitos do costume, de David Bowie aos U2, de Prince ao Rolling Stones. Para lá de abordagens definitivas a trabalhos como Pulse e The Division Bell e da série Immersion , que motivou o tratamento de luxo a clássicos como The Wall, The Dark Side of The Moon e Wish You Were Here, e entre uma miríade de edições avulso em vinil e outros formatos, os fãs com maior poder de investimento puderam perder-se de amores pelas caixas Discovery (16 CDs a proporcionarem uma perspectiva panorâmica de toda a discografia) e The Early Years (10 CDs, 8 Blu-rays, 9 DVDs mais 5 singles em vinil). Agora, The Later Years, a nova caixa de luxo que aterrou no mercado mesmo a tempo desta época natalícia, oferece um olhar detalhado sobre o período em que David Gilmour, Nick Mason e Rick Wright tiveram que carregar o peso da marca Pink Floyd depois da dissidência de Roger Waters.
A nova caixa é pensada como um contraponto de The Early Years, e em termos de embalagem adota um formato completamente distinto, ligeiramente superior a um vinil de doze polegadas, parecendo, portanto, uma caixa desenhada para conter LPs. Ao invés, The Later Years abriga cinco CDs (A Momentary Lapse of Reason, Delicate Sound of Thunder, Live Recordings 1987 & 1994 e Knebworth Concert 1990); seis Blu-rays (com áudio de misturas surround de alta resolução para A Momentary Lapse of Reason, The Division Bell, Delicate Sound of Thunder, Pulse, Concertos em Veneza 1989 e Knebworth 1990 e uma série de filmes de concertos e documentários); cinco DVDS (com material vídeo igualmente disponível nos Blu-rays); dois singles de sete polegadas em vinil com a versão de “Arnold Layne” que os Pink Floyd tocaram num concerto de tributo a Syd Barrett em 2007 e “Lost For Words”, gravada nos ensaios da tour de Pulse; um livro de fotos de 60 páginas em capa dura; réplicas de programas de digressão, um livro de letras com o cuidado visual habitual nos produtos com design Hipgnosis e uma série de objectos de memorabilia, incluindo tour passes, posters e autocolantes. Chega? Chega certamente para fazer salivar os mais dedicados e completistas fãs dos Pink Floyd.
De fora fica o derradeiro registo do grupo, Endless River, editado em 2014, mas, em compensação, boa parte do material foi novamente misturado e algum, como A Momentary Lapse of Reason foi mesmo alvo de mexidas mais sérias, com a adição de novas partes de bateria e de teclados, a partir dos multi-pistas das gravações originais. Em Portugal, esta caixa aproxima-se dos 400 euros, preço de retalho, com os valores nos diferentes retalhistas europeus a posicionar-se quase sempre acima dos 300 euros, valor em França, por exemplo, e a chegar mesmo às 350 libras no Reino Unido (cerca de 411 euros).
“É frustrante que estes dois cavalheiros de idade considerável [Gilmour e Waters] continuem de costas voltadas” Nick Mason
Nas já mencionadas declarações à Rolling Stone, Nick Mason – que é o único membro do Pink Floyd que toca em todos os álbuns da sua discografia oficial e que se manteve próximo tanto de Gilmour como de Waters – explica que o baixista e cérebro principal do mega-projeto 'The Wall' nunca pensou que o grupo pudesse ter um futuro depois de ter anunciado que iria sair, em 1985. “Penso que faz confusão a Roger ele ter cometido uma espécie de um erro quando saiu, assumindo que isso seria o fim da banda. É uma irritação constante, na verdade, que ele continue a implicar com isso. Tenho alguma hesitação em pensar demasiado no assunto, porque os problemas são entre eles os dois, não comigo. Na verdade, dou-me bem com ambos, e penso que é frustrante que estes dois cavalheiros de idade considerável continuem de costas voltadas”.
Depois da saída de Waters, os músicos voltaram a cruzar-se em palco para uma triunfante e muito celebrada apresentação no Live 8, em 2005, e para um evento de beneficência para crianças da Palestina no Verão de 2010. Um ano depois, foi Gilmour que cedeu e apareceu na O2 Arena, em Londres, para tocar “Confortably Numb” com Waters, subindo depois ao palco com Nick Mason para o encore final. Claro que o que muitos viram como sinais positivos de um eventual apaziguamento de relações que pudesse até levar a uma tão amplamente desejada reunião foi eliminado com o projeto 'Endless River', uma homenagem a Rick Wright pensada e conduzida sobretudo por Gilmour que não cedeu um milímetro no que à relação com Roger Waters diz respeito: “Porque que diabos alguém há de pensar que o que fazemos agora poderá ter alguma coisa a ver com ele é algo que não compreendo”, desabafou Gilmour à Rolling Stone. “O Roger estava cansado de fazer parte de um grupo pop. Ele está muito habituado a ser a única força por trás da sua carreira. Pensar que ele pudesse vir encaixar-se numa coisa que tem uma base democrática... ele não seria capaz disso. Além disso, eu estava nos meus trintas quando o Roger abandonou o grupo. Tenho 68 agora, já foi há meia vida atrás. Já não temos nada em comum, na verdade”
Pink Floyd em 1987: Nick Mason, David Gilmour, Richard Wright
Os dois álbuns de originais resultantes da fase pós-Waters que surgem na caixa The Later Years, A Momentay Lapse of Reason (1987) e The Division Bell (1994) são normalmente relegados para posições secundárias nas listas que procuram uma hierarquia coletiva para a discografia do Pink Foyd, quase sempre encimadas pelo tríptico The Wall (1979), Wish You Were Here (1975) e The Dark Side of The Moon (1973) (que, certamente não por acaso, foram os títulos celebrados nas edições de luxo da série Immersion). Em 2011, a BLITZ dedicou um número especial ao Pink Floyd que então assistiam ao arranque do programa de reedições Why Pink Floyd?. Na abordagem à discografia do grupo, André Gomes escreveu, a propósito de A Momentary Lapse of Reason, que para compensar a partida de Waters, “Gilmour tratou de recrutar as pessoas certas para colocar o dirigível Pink Floyd de volta no ar: Jon Carin, Phil Manzanera e Bob Ezrin foram chamados para trabalhar no álbum, Richard Wright foi readmitido na banda e Anthony Moore foi escolhido para dar palavra a algumas canções”. Trata-se, escreve ainda Gomes, de “um álbum composto essencialmente por temas instrumentais dados a divagações atmosféricas onde o virtuosismo de Gilmour encontra uma base segura e fértil”. E conclui: “Entre batalhas jurídicas e musicais, A Momentary Lapse of Reason acaba por ser um disco a solo de David Gilmour, apesar de ter ao seu lado Nick Mason e Richard Wright”.
Já sobre The Division Bell, o colaborador da revista BLITZ escrevia, alguns anos antes da edição de Endless River, que “o derradeiro grito dos Pink Floyd, já na década de 90, sete anos após A Momentary Lapse of Reason, resolvidos que estavam todos os problemas e contendas legais, é um disco sobre a comunicação e como o uso da palavra pode ser um fator decisivo de resolução de problemas, algo que muitos interpretaram como alusivo à relação tremida entre David Gilmour e Roger Waters”. E ainda se adianta que “ao contrário do álbum anterior, The Division Bell é um álbum escrito por uma banda e não apenas por David Gilmour, o que acaba por se refletir intensamente na cor das canções deste álbum”. Que o jornalista garante que mostra o Floyd “decididos em fazer as pazes com o passado e apostados em sinalizar o final da viagem com a honra que o momento pedia”.
Sobre Pulse, outro dos pilares de The Later Years, no mesmo número especial da BLITZ recordava-se que “quando entraram em digressão, o Pink Floyd não planeava lançar um disco ao vivo – tinham editado Delicate Sound of Thunder em 1988 – mas mudaram de opinião assim que perceberam que tinham trazido ao palco, quase sem perceberem, a interpretação integral de Dark Side of The Moon. E esse é precisamente um dos maiores atrativos de Pulse, editado em versão áudio e visual para quem deseja experienciar o que o Pink Floyd imaginou ao vivo aquando da edição de The Division Bell”.
São, de fato, marcos de um tempo em que o Pink Floyd poderia já contar atrás de si os seus melhores anos, mas, ainda assim, o período documentado em The Later Years traduziu-se em mais de 40 milhões de cópias de discos vendidos em todo o mundo e em duas memoráveis digressões, a A Momentary Lapse of Reason Tour que decorreu entre setembro de 1987 e julho de 1989, e a The Division Bell Tour que finalmente trouxe o grupo a Portugal para duas inesquecíveis noites no Estádio José de Alvalade, a 22 e 23 de julho de 1994, um espetáculo, de acordo com a reportagem BLITZ da época, “se fez de proezas técnicas que foram arrancando ‘ahhs’ à multidão”. E, claro, música que por essa altura já tinha conquistado um lugar único na história.
É para os fãs que possam eventualmente carregar até hoje, 25 anos depois, memórias especiais dessas noites de verão, que esta edição especial The Later Years é pensada. Mais uma pequena arca recheada de tesouros a pensar nos fãs fervorosos.
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